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Educação

Negros representam apenas 16% dos professores universitários

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No Dia da Consciência Negra, levantamento do G1 mostra ainda que, quanto maior o grau de escolaridade do professor, maior a desigualdade racial.

A professora de geologia Adriana Alves, paulistana de 38 anos, acaba de ter a segunda filha. A professora de química Anna Maria “Anita” Canavarro Benite, fluminense de 39, já é mãe de três. Além de participarem do universo de mulheres que equilibram carreira e maternidade, ambas também integram o seleto grupo de 682 mulheres no Brasil que têm título de doutorado, ocupam um cargo de professora em tempo integral com dedicação exclusiva em uma universidade pública, e se declararam pretas, segundo o Censo da Educação Superior.

O número vem de um levantamento feito pelo G1 a partir dos microdados divulgados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). Em 2017, ano das informações públicas mais recentes, quase 400 mil pessoas davam aulas em universidades públicas e particulares do Brasil, mas só 62.239 delas, ou 16% do total, se autodeclararam pretas ou pardas.

A representação dessa parcela da população entre os professores universitários cresceu nos últimos anos, mas não muito: em 2010, os negros (grupo que engloba a população preta e parda) respondiam por 11,5% das vagas de docentes do ensino superior.

De 392.036 docentes que constam no Censo, 29,4% se recusaram a declarar uma cor ou raça. Veja abaixo a distribuição dos demais 274.794 professores, e o histórico anual desde 2010:

Cor e raça dos professores universitários; Nº de docentes pretos e pardos subiu de 11,5% para 16% entre 2010 e 2017 — Foto: Arte/G1

Cor e raça dos professores universitários; Nº de docentes pretos e pardos subiu de 11,5% para 16% entre 2010 e 2017 — Foto: Arte/G1

Os dados mostram que, além de continuarem sendo uma minoria entre o total de professores universitários, os negros veem a representatividade racial cair conforme aumenta o grau de escolaridade desses docentes.

Uma análise entre 2010 e 2017 com o grupo de professores que autodeclararam uma raça ou cor mostra que:

  • Nesse período, o número de professores com mestrado subiu de 85.655 para 115.869, sendo que os negros respondiam por 20% e 23% desse total, respectivamente.
  • Já entre os professores com doutorado, o número absoluto aumentou de 53.006 para 100.354, com a parcela representativa dos negros crescendo de 11,4% para 17,6%.
Quanto maior o grau de escolaridade dos professores universitários, menor é a representatividade de pretos e pardos — Foto: Karina Almeida/G1

Quanto maior o grau de escolaridade dos professores universitários, menor é a representatividade de pretos e pardos — Foto: Karina Almeida/G1

Segundo Alexsandro Santos, doutor em educação pela USP e consultor legislativo da Câmara Municipal de São Paulo, o avanço se deve em parte a uma combinação de fatores: a instituição, por lei, de cotas nos concursos públicos, em 2008, e o lançamento do Reuni, o programa de expansão das universidades federais.

“Os professores brancos, que têm mais facilidade de se colocar nos mercados, não topavam ir nessas vagas do Reuni porque estavam longe das capitais”, disse ele.

De acordo com os dados, as instituições públicas apresentam desigualdade racial ligeiramente menor do que as privadas, onde 77% dos professores se declaram brancos. Porém, é nas universidades privadas que estão a maior parte das vagas de trabalho.

O crescimento lento dessa representatividade, de acordo com o especialista, indica que, se nada mudar, o Brasil levará décadas para que a proporção racial de servidores do ensino superior se equipare à da população brasileira, onde a maioria dos habitantes é negra.

Ação afirmativa na pós-graduação

Para acelerar esse avanço, Santos defende a instituição de ações afirmativas também no processo seletivo da pós-graduação como um mecanismo.

“Ações afirmativas na graduação permitem fazer um pedaço da correção das desigualdades. Só que a pós-graduação tem vetores de seleção que a graduação nem sempre contempla”, explicou ele. “Por exemplo, os programas de pós de excelência pedem prova de idioma às vezes no ingresso. Isso não se resolve necessariamente na graduação. E aí, a população negra e mais pobre fica pra trás.”

Ele lembrou que, em maio de 2016, o Ministério da Educação, instado pela Justiça, publicou uma portaria dando prazo para que as universidades e institutos federais elaborassem “propostas sobre inclusão de negros (pretos e pardos), indígenas e pessoas com deficiência em seus programas de pós-graduação (mestrado, mestrado profissional e doutorado), como Políticas de Ações Afirmativas”.

No ano seguinte, a pasta informou que o processo de organização de uma base de dados com o número de negros, indígenas e pessoas com deficiência nos programas de pós com políticas de ação afirmativa estava “em andamento”. Veja exemplos de cursos de pós com cotas.

“Não basta ser doutor, tem pontuação por publicação de artigo, a competição é muito elevada. Tem um recorte que pesa sobre as pessoas negras”, afirma Santos. “Elas não têm o mesmo acúmulo de capital acadêmico que, ao longo da história, gera uma oportunidade melhor.”

Uma análise publicada por três pesquisadoras de ciências sociais do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) mostra que a desigualdade racial também persiste na distribuição de bolsas de formação e pesquisa e, quanto mais prestigiada a bolsa, menos acessível ela é aos negros.

A pesquisa analisou a cor ou raça declarada pelos recipientes em janeiro de 2015 de 59.160 bolsas de quatro categorias:
  1. 27.811 bolsas de iniciação científica (nível de gradução)
  2. 9.144 bolsas de mestrado (nível de pós-graduação)
  3. 8.165 bolsas de doutorado (nível de pós-graduação)
  4. 14.040 bolsas de produtividade em pesquisa (nível de pós-graduação, considerada a mais prestigiada)

O número de negros e negras só se aproxima a um terço do total de bolsistas na iniciação científica, categoria com a menor remuneração:

Transformação das coisas

Uma das 27 mulheres negras do Brasil com um título de doutorado em química, Anita Canavarro cresceu sem pai e escolheu a carreira nessa área por causa de interesses despertados quando criança. Certa vez ela viu a mãe, que não tem ensino superior, mas foi professora de ciências, improvisar um cano para fazer a água de um poço chegar até a casa sem encanamento onde vivia com as duas filhas, na Baixa Fluminense.

“Nós tivemos uma infância muito pobre, e minha mãe transformava as coisas. Sempre me interessei pela transformação das coisas. Isso vai te marcando e você vai se interessando. Foi isso que me levou à química”, explicou, ressaltando que a ideia de seguir carreira acadêmica não foi planejada.

“Quando você vive privada de muitas coisas, o sonho que se tem é sair daquela situação de privação. E foi esse o caminho que eu encontrei, pelo estudo. O estudo faz promoções em termos de mobilidade social na vida de pessoas negras e pobres.” – Anita Canavarro

Anita Canavarro, professora de química da UFG e ex-presidente da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros e Negras (ABNP) — Foto: Arquivo pessoal/Anita Canavarro

Anita Canavarro, professora de química da UFG e ex-presidente da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros e Negras (ABNP) — Foto: Arquivo pessoal/Anita Canavarro

Anita acumula exemplos de como quase foi escanteada pelo ambiente acadêmico. Ela chegou a ser aprovada no vestibular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) de primeira, mas na terceira chamada, e só descobriu depois do prazo. “A desinformação é muito grande. O edital tem normativas específicas em uma linguagem que a gente não compreende.” Para ela, o mundo universitário segue um “código simbólico de pertencimento” no qual os estudantes fora do perfil de apoio socioeconômico exigido no ensino superior não se encaixam.

Durante a graduação, para pagar o transporte até a faculdade, ela manteve diversos empregos, como vendedora em loja, shopping e polo de confecção, bibliotecária e técnica em química. Para entrar no mestrado, precisou tentar mais de uma vez o processo seletivo. Uma vez aprovada, conseguiu o apoio do orientador.

“Fiz o mestrado sem computador. Meu orientador me deu a chave do laboratório, me deu todas as condições para que eu saísse dali em pé de igualdade.”

Em 2005, ela obteve o título de doutora com uma tese na área de química inorgânica chamada “Estudos utilizando a Teoria do Funcional de Densidade da química de coordenação de derivados N-acilidrazônicos aromáticos e heteroaromáticos candidatos a inibidores de metaloenzimas Zn-dependentes”.

No ano seguinte, realizou três concursos públicos de docência – foi aprovada em todos, e convocada para dar aulas na Universidade Federal de Goiás (UFG) em 2006.

O Brasil pré-cotas

O Brasil ainda não dispunha de políticas de ação afirmativa quando Anita e Adriana Alves terminaram o ensino médio e, por isso, nenhuma delas se beneficiou das cotas raciais. Mas ambas defendem a política.

“Se tivesse as condições que existem hoje, acho que minha trajetória teria mais opções”, diz Anita. “Dou todo o crédito para o professor [do mestrado, que lhe deu a chave do laboratório], mas e se eu não encontrasse essa pessoa?”

Adriana diz que está satisfeita com sua carreira na geologia, mas que seu destino foi definido justamente por falta da opção de cotas ou bonificação. Filha de um motorista de ônibus e de uma passadeira de roupas, ela fez o ensino médio integrado ao técnico em processamento de dados e planejava seguir o histórico da família: arrumar um emprego assim que terminasse o ensino básico.

A professora Adriana Alves, diante de retratos dos diretores do Instituto de Geociências da USP — Foto: Fábio Tito/G1

A professora Adriana Alves, diante de retratos dos diretores do Instituto de Geociências da USP — Foto: Fábio Tito/G1

Foi inspirada por um professor a tentar o vestibular, mas logo desistiu das duas primeiras opções – computação e engenharia da computação. “Tirei a computação da vida porque sabia que não ia passar. Podia ter querido ser médica, talvez eu seria excelente médica. E tirei qualquer devaneio de fazer engenharia, porque minha nota não daria”, explicou ela.

A geologia veio por causa de um jogo de RPG e, logo antes de se formar, ela conseguiu um estágio em uma consultoria que a fez ir direto da graduação para o mercado de trabalho.

“O valor que eu recebia no estágio era mais do que meu pai, mais que a renda de todo mundo junto”, lembra Adriana, que logo virou o arrimo da família.

O ganho financeiro com o trabalho, porém, não veio acompanhado da satisfação pessoal, e ela precisou tomar a difícil decisão de largar o emprego e voltar à acadêmia.

Maternidade e produtividade

A jovem então “pulou” o mestrado e foi aceita no doutorado direto também na USP, combinado com um estágio de um ano na Universidade de Alberta, no Canadá. O título de sua tese na área de mineralogia e petrologia é “Petrogênese de plútons graníticos do leste paulista: geocronologia, geoquímica elemental e isotópica”, defendida em 2009.

Em 2010, ela foi contratada pelo Instituto de Geociências da USP como professora, e hoje é uma de apenas 129 professores da universidade que se autodeclaram pretos ou pardos, segundo dados de outubro de 2018 divulgados pelo Jornal da USP. Isso representa 2,2% do total de 5.820 docentes ativos.

Adriana posa com o marido e as filhas no Instituto de Geociências da USP, onde os dois lecionam — Foto: Fábio Tito/G1

Adriana posa com o marido e as filhas no Instituto de Geociências da USP, onde os dois lecionam — Foto: Fábio Tito/G1

Hoje com 38 anos, ela está de licença-maternidade para cuidar da segunda filha, Serena, de quatro meses – a mais velha, Flora, tem dois anos e quatro meses.

“Entre as professoras universitárias, a gente é mãe mais tarde. A gente primeiro quer o emprego, depois quer passar do [período] probatório, que na USP é de seis anos, não de três. Quando a primeira nasceu eu estava com 36 anos”, explicou Adriana Alves.

“Eu me acho mais eficiente hoje, mas a eficiência tem que dar conta de tudo: do administrativo da universidade, das inúmeras aulas, artigos e das meninas. Tudo cai um pouco.”

Adriana e Anita, que é mãe de Igor, Thomas e Sofia, com 13, 10 e 8 anos, respectivamente, fazem parte tanto da minoria racial quanto da disparidade de gênero entre os docentes. Os homens são maioria entre os professores universitários em todos os recortes raciais, mas, entre os professores que se declaram pretos ou indígenas, esse desequilíbrio é ainda maior, e chega a 58,25% e 60% do total, respectivamente.

“A universidade não está preparada para uma mulher com filhos. Ela não está preparada para uma mulher” – Anita Canavarro

Ex-presidente da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros e Negras, Anna Marina, ou Anita, também lidera um programa para aproximar alunas do ensino básico de pesquisadoras negras — Foto: Arquivo pessoal/Anita CanavarroEx-presidente da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros e Negras, Anna Marina, ou Anita, também lidera um programa para aproximar alunas do ensino básico de pesquisadoras negras — Foto: Arquivo pessoal/Anita Canavarro

Ex-presidente da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros e Negras, Anna Marina, ou Anita, também lidera um programa para aproximar alunas do ensino básico de pesquisadoras negras — Foto: Arquivo pessoal/Anita Canavarro

Ciência tem cor?

Os microdados do Censo da Educação Superior revelam ainda outro importante debate da igualdade racial na academia: a recusa da autodeclaração. Os números mais recentes mostram que, dos 392.036 indivíduos que constam na base de dados de docentes do ensino superior, 117.242, ou 29,4% do total, se recusaram a declarar uma cor ou raça no questionário.

Desses, 51,6% têm diploma de doutorado e 66,7% trabalham em universidade pública. Desse grupo, porém, nem Anita Canavarro, da UFG, nem Adriana Alves, da USP, dizem participar, já que as duas fazem questão de declararem que são pretas.

Segundo Adriana, muitos cientistas evitam declarar uma cor ou raça porque acreditam que ciência não deveria ter cor. “É muito mais difícil fazer análise assim”, ressalta ela, que faz questão de preencher a autodeclaração para contribuir com as estatísticas. “Mas muitos dos que se veem como brancos nos EUA não seriam percebidos dessa maneira.”

Já Anita, que entre 2016 e 2018 foi presidente da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros e Negras (ABNP), acredita que esse fenômeno é produto de um processo de apagamento da identidade racial na sociedade brasileira.

“A ciência não deveria ter cor, isso é verdade. Mas a ciência que nos é ensinada tem cor e tem gênero”, afirma Anita.

Autodeclaração entre os docentes universitários
Veja todas as respostas sobre cor e raça no Censo de Educação Superior 2017
Não quis declarar cor/raça: 29,39 %Branca: 53,62 %Preta: 1,81 %Parda: 14,05 %Amarela: 1,01 %Indígena: 0,12 %

Branca.
Por Ana Carolina Moreno, G1

Educação

Univasf promove concurso público para cargo de professor efetivo

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Desde quarta-feira, 17, a Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf) está com inscrições abertas para um concurso público com 32 vagas para o cargo de Professor da Carreira do Magistério Superior. Os aprovados vão atuar em diferentes cursos da instituição, nos campis de Petrolina-PE, Salgueiro-PE, Paulo Afonso-BA, Senhor do Bonfim-BA e São Raimundo Nonato-PI.

Os interessados podem se inscrever no site de concursos da universidade até o dia 29 de abril, mediante pagamento de taxa equivalente à área desejada, que varia entre R$ 100 e R$ 200. Candidatos que preencherem os requisitos estabelecidos no edital podem solicitar a isenção da taxa.

Para se candidatar é necessário possuir formação acadêmica referente à área escolhida, conforme o Edital n° 06/2024. Os profissionais selecionados vão trabalhar em regime de 40 horas de dedicação exclusiva ou 20 horas semanais, variando de acordo com o perfil das vagas. Os vencimentos estão detalhados no item 2.2 do edital.

O concurso será composto por prova escrita, prova de aptidão didática, prova de defesa de memorial e prova de títulos. As provas escritas vão ocorrer em maio de forma presencial no Campus Paulo Afonso (área de conhecimento de Medicina) e Campus Sede Petrolina (demais áreas de conhecimento). As outras provas acontecerão de forma remota. O resultado final e homologação do concurso serão publicados no Diário Oficial da União.

Por Alvinho Patriota

           

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Educação

Acredito no poder transformador da educação”, diz escritora indígena

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Considerada a primeira mulher indígena a publicar um livro no Brasil, a escritora Eliane Potiguara conquistou o respeito e admiração de estudiosos e leitores de suas obras. Em 2014, a autora de A Terra É a Mãe do Índio (1989) e de Metade Cara, Metade Máscara (2004), entre outros títulos, foi agraciada com a Ordem do Mérito Cultural, com a qual o Ministério da Cultura distingue pessoas e instituições que contribuem para fomentar a cultura brasileira. Em 2021, recebeu do Conselho Universitário da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) o título de doutora honoris causa.

Rio de Janeiro (RJ), 17/04/2024 - Eliane Potiguara, educadora e ativista, considerada a primeira escritora indígena a publicar um livro no Brasil. Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil
Eliane Potiguara, educadora e ativista, é considerada a primeira escritora indígena a publicar um livro no Brasil – Tânia Rêgo/Agência Brasil

O reconhecimento como escritora, educadora e ativista política não é pouca coisa. Principalmente para quem, como ela, só foi alfabetizada aos 7 anos de idade. À época, ela assumiu a tarefa de escrever as cartas que, do Rio de Janeiro, a avó queria enviar aos parentes que, na primeira metade do século passado, se espalharam para fugir de conflitos fundiários e de outras formas de violência contra os povos indígenas.

“Fui alfabetizada um pouco tarde, para escrever as cartas que a minha avó enviava principalmente para a Paraíba, de onde a família teve que fugir devido às ameaças de morte”, conta Eliane. Aos 73 anos de idade, a fundadora da Rede de Comunicação Indígena Grumim (criada em 1987 e inspirada “na saga de famílias indígenas que, após terem passado por um processo de violência, tiveram que peregrinar em busca da sobrevivência física, moral e étnica”) relembra a importância desse processo.

“A partir da escrita das cartas, da leitura das respostas que recebíamos e das histórias que minha avó contava, fui compreendendo essa espécie de exílio familiar que me levou a crescer no Morro da Providência, no Rio de Janeiro. Fiquei sabendo que parte da família tinha fugido para não ser assassinada, como tantos outros indígenas, mas daí a me entender como indígena em uma sociedade racista, discriminatória, demorou um pouco mais”, conta a escritora.

Defensora de uma educação pública de qualidade que leve em conta a diversidade cultural étnica que compõe o Brasil e forjada no movimento de resistência e autoafirmação indígena, Eliane se revela otimista, mas não ingênua. “A cultura indígena é maravilhosa e está viva. Seguiremos voltados a essa incrível fidelidade a nossa ancestralidade, mantendo-nos alinhados com as novas tecnologias.”

Leia, a seguir, trechos da entrevista que Eliane Potiguara concedeu para a série de entrevistas com intelectuais, lideranças e ativistas indígenas que a Agência Brasil publica esta semana, por ocasião do Dia dos Povos Indígenas, na sexta-feira (19).

Agência Brasil: A cartilha A Terra É a Mãe do Índio, que a senhora escreveu, é apontada como a primeira obra literária publicada no Brasil por uma mulher indígena, em 1989. Desde então, muitos outros autores e autoras indígenas surgiram, alguns com relativo sucesso comercial. O que tem motivado o surgimento de tantos autores indígenas nas últimas décadas?
Eliane Potiguara: Primeiramente, [a necessidade de libertar] a voz sufocada da população indígena. Ao transformarmos [registrarmos] o pensamento indígena em livros, encontramos um canal de resistência e de luta. Um canal por meio do qual podemos divulgar as situações que vivemos. Com o avanço das tecnologias e com a internet, encontramos novos meios [de expressão] e caminhos. Muitos líderes, professores, pensadores indígenas que têm algo a dizer à sociedade em geral têm se valido desses canais.

Agência Brasil: Como esse trabalho de promover o acesso da população em geral às narrativas indígenas, transmitidas pelos próprios indígenas, pode contribuir para o futuro dos povos originários e da sociedade?
Eliane: Contribui como um elemento de conscientização política. Conscientização sobre quem somos, para onde vamos e o que queremos enquanto brasileiros e enquanto povos indígenas. Por exemplo: levar um material escrito por indígenas para dentro das escolas é uma iniciativa transformadora, inspiradora. Mexe com o universo cultural e com o inconsciente de parte da população, pois se trata de um material que tanto pode conscientizar professores não indígenas, quanto ser trabalhado com estudantes indígenas e não indígenas. Há até pouco tempo, o material didático e literário usado nas escolas em geral estava em conformidade com a realidade do colonizador. Hoje, mesmo com todos os problemas, temos uma lei que torna obrigatório o estudo da história e das culturas indígena e afro-brasileira e uma educação que, de alguma forma, contempla os povos indígenas. Há muitos professores e gestores indígenas, o que também é um fato bastante relevante. Além do mais, as narrativas indígenas também ajudam a revelar como nós, indígenas, com nossos conhecimentos tradicionais, podemos contribuir para, por exemplo, preservarmos o que os não indígenas chamam de meio ambiente e nós chamamos de natureza.

Agência Brasil: Chama a atenção que a senhora, que diz ter sido alfabetizada tardiamente, tornou-se educadora e autora de tantos livros. Qual foi a importância da instrução formal e da leitura para sua trajetória pessoal? E qual é, a seu ver, a importância da educação para o futuro das comunidades indígenas?
Eliane: Fui alfabetizada um pouco tarde, entre 7 e 8 anos de idade, para escrever as cartas que a minha avó enviava principalmente para a Paraíba, de onde a família teve que fugir devido às ameaças de morte. Nasci no Rio de Janeiro e cresci no Morro da Providência, onde cresci fechada em uma espécie de gueto, protegida da violência ao redor. Minha avó não queria sequer que eu olhasse para as pessoas, tentava limitar nossos contatos. Nesses primeiros anos, eu tinha como que uma espécie de anteolhos psicológicos que me mantinham alienada da realidade. A partir da escrita das cartas, da leitura das respostas que recebíamos e das histórias que minha avó contava, fui compreendendo essa espécie de exílio familiar. Fiquei sabendo que parte da família tinha fugido para não ser assassinada, como tantos outros indígenas, mas daí a me entender como indígena em uma sociedade racista, discriminatória, demorou um pouco mais. Daí seguirmos lutando por uma educação indígena de qualidade, pela preservação das línguas e das tradições indígenas.

Agência Brasil: No poema Identidade Indígena, de 1975, há um trecho em que a senhora destaca a importância da ancestralidade e aposta que, no futuro, os povos indígenas “brilharão no palco da história”, não precisando mais “sair pelo mundo embebedados pelo sufoco do massacre, a chorar e derramar preciosas lágrimas por quem não lhes tem respeito”. A senhora mantém essa expectativa?
Eliane: Sim. Sou fruto desse nosso processo de colonização, assassinatos e de famílias migrantes sofridas, mas sou também uma pessoa que acredita nas mudanças, na conscientização política, em que vamos conseguir conscientizar a população em geral, que já vem se conscientizando. De um lado, temos, hoje, vários indígenas médicos, antropólogos, professores, advogados etc., além dos que estão em cargos de poder. De outro, há uma grande parcela de pessoas preocupadas, por exemplo, com a questão ambiental, com o aquecimento global. Então, a gente já percebe essa mudança que pode, sim, ser crescente. Como educadora, acredito em mudanças positivas e no poder transformador de uma educação mais de acordo com a realidade.

Agência Brasil: No mesmo poema, a senhora constata que “as contradições nos envolvem e as carências nos encaram”. Hoje, isso parece ainda mais evidente. De um lado, há pensadores indígenas viajando o mundo para proferir palestras e publicando livros de sucesso. Há indígenas no comando de órgãos públicos como o ministério e a fundação dos povos indígenas (Funai). O número de pessoas que se autodeclaram indígenas saltou de 294 mil, em 1991, para quase 1,7 milhão, em 2022. Por outro lado, os conflitos por terra persistem; há problemas na saúde e na educação indígenas e crises humanitárias como a que afetam os yanomami, na Amazônia, e os guarani e kaiowá, em Mato Grosso do Sul. Neste contexto, e considerando que o futuro não está dado, está sempre em disputa, como a senhora imagina o futuro dos povos indígenas?
Eliane: Vivemos um conflito, uma luta de classes, mas, apesar desse sistema opressor e egoísta que admite que um homem explore outro homem apenas para ampliar seu capital financeiro, acredito na evolução, em mudanças positivas. Veja o exemplo dos navajos [da América do Norte], cuja sociedade domina tecnologias modernas sem abrir mão da identidade, cultura, língua ou espiritualidade indígena. Temos condições de conciliar esses aspectos – que não são antagônicos. Há exemplos parecidos no México, na Finlândia. Obviamente, é preciso respeitar a diversidade étnica e cultural e a autodeterminação das comunidades que optam por viver isoladas, cujos modos de vida e tradição devem ser igualmente preservados.

Agência Brasil: Então a senhora aposta em um futuro em que os índios terão domínio e acesso aos avanços tecnológicos e seus benefícios, mas preservando suas identidades?
Eliane: Claro. Seguiremos voltados a essa incrível fidelidade a nossa ancestralidade, mantendo-nos alinhados com as novas tecnologias. Até por causa dos estereótipos, preconceitos e do tipo de educação de que falei no início, quando eu era mais jovem, acreditava que ser indígena é ser pobre e algo em vias de ser extinto. Não é. A cultura indígena é maravilhosa, está viva. Ela é extremamente resistente. Haja vista esses 524 anos de opressão a que seguimos resistindo. Com quase 74 anos de idade, ainda vejo um futuro promissor. O Brasil é terra indígena e os brasileiros precisam ter consciência de sua ancestralidade.

*Dentro da série especial sobre o futuro dos povos indígenas, a Agência Brasil publicará amanhã a entrevista com a ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara.

Fonte:  Agência Brasil

 

           

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Educação

Prefeito e Secretária de Educação de Garanhuns condenados a devolver R$ 302 mil do Fundeb

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A 23ª Vara Federal em Pernambuco condenou, nesta terça-feira (16), o atual prefeito de Garanhuns, Sivaldo Rodrigues Albino e a secretária de Educação do Município Wilza Alexandra de Carvalho Vitorino a devolverem o valor de R$ 302 mil provenientes do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento dos Profissionais da Educação (Fundeb).

De acordo com a sentença, proferida pelo juiz titular da 23ª vara, Felipe Mota Pimentel, recursos federais destinados ao desenvolvimento da educação foram utilizados de forma irregular, para pagamento de 13º salário e férias dos servidores inativos da rede municipal de ensino relativas aos anos de 2018, 2019 e 2020.

Em sua decisão, o magistrado determinou a nulidade dos atos admirativos, uma vez que houve desvio de finalidade e que tanto a Constituição Federal, quanto a cartilha com determinações sobre a utilização do Fundeb, explicitam em quais ações os recursos devem e não devem ser aplicados.

“Quanto ao Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica – FUNDEB, dispõe a Constituição Federal: ` § 7º É vedado o uso dos recursos referidos no caput e nos §§ 5º e 6º deste artigo para pagamento de aposentadorias e de pensões. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 108, de 2020)’ ”, comentou o magistrado em sua decisão.

“A lesão decorre da circunstância de que os recursos do FUNDEB deixaram de ser devidamente empregados nas ações de manutenção e desenvolvimento da educação. A título exemplificativo, tais verbas deixaram de ser empregadas na capacitação dos profissionais da educação em efetivo exercício, na aquisição de equipamentos ou instalações necessárias à educação, conforme previsão do art. 70 da Lei 9.394/1996,” explicou o magistrado.

A decisão esclarece, ainda, que apesar da irregularidade no uso dos recursos, os servidores que receberam o benefício não podem arcar com os danos causados pela gestão municipal.

“No presente caso, não possível, todavia, se determinar que os servidores inativos e pensionistas beneficiários dos pagamentos ilegais devolvam tais verbas aos cofres públicos, primeiro, porque receberam de boa-fé, segundo, porque tratam-se de verbas alimentícias, portanto, irrepetíveis. A reparação ao erário deve ocorrer, pois, através da via das perdas e danos, como prescreve a Lei 4.717/65: Art. 11. A sentença que, julgando procedente a ação popular, decretar a invalidade do ato impugnado, condenará ao pagamento de perdas e danos os responsáveis pela sua prática e os beneficiários dele, ressalvada a ação regressiva contra os funcionários causadores de dano, quando incorrerem em culpa. Dessa forma, devem os réus, em solidariedade, responder pelas perdas e danos consistentes na devolução da verba pública do FUNDEB utilizada para pagamentos com desvio de finalidade”, determina o juízo.

Em uma decisão anterior no mesmo processo, proferida em novembro de 2023, a 23ª Vara Federal já havia concedido uma liminar determinando que o prefeito e a secretária se abstivessem de utilizar recursos do FUNDEB para realização de novos pagamentos de 13o salários e férias de servidores inativos ou pensionistas.

A decisão ocorre em primeira instância, ainda cabendo recurso por parte dos réus ao TRF5. (Do Nill Jr)

 

           

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