Afinal, as democracias vivem tempos de erosão? Estão claudicantes? No aclamado Como as Democracias Morrem, os cientistas políticos Steven Levitsky e Daniel Ziblatt sustentam que a erosão democrática pode ocorrer de forma gradual e insidiosa, muitas vezes a partir de líderes eleitos que minam as instituições por dentro.
Analisemos.
A ideia de que as democracias estão “morrendo” é complexa e ainda objeto de intenso debate. Embora não haja consenso sobre um colapso iminente, muitos estudiosos apontam para sinais claros de enfraquecimento dos regimes democráticos e para o crescimento de ameaças aos seus pilares. As democracias cambaleiam, não caíram, mas andam trôpegas, como quem sofreu um golpe e tentam, com dificuldade, se manterem em pé. As democracias não morrem, mas adoecem. Na América Latina, a democracia claudica há mais tempo. Após as redemocratizações dos anos 1980, houve grandes expectativas de progresso. Mas o que se viu foi uma bateria de ilegalidades: corrupção endêmica (mensalões, lava-jatos); desigualdade persistente, com milhões vivendo entre o desemprego e a informalidade; crises institucionais, com impeachment e reeleições polêmicas; governos instáveis e populismos de todos os matizes, do bolivarianismo ao ultraliberalismo.
O Brasil é um exemplo claro da democracia claudicante. Sofremos um ataque direto ao processo eleitoral em 2022, com mentiras sobre urnas, tentativas de golpe e culminando nos atos golpistas de 8 de janeiro de 2023; vivemos uma erosão institucional, com ataques ao Supremo, desrespeito ao Congresso e ameaças frequentes à liberdade de imprensa; a política se transformou em guerra cultural, com pauta moralista, ódio nas redes, negacionismo e uso sistemático de desinformação; a desigualdade social persiste, e a população oscila entre a descrença e a raiva.
Nos países que padecem de claudicância democrática, os fatores mais proeminentes são estes: ataques à democracia vindos de dentro do próprio sistema político; ascensão de líderes populistas autoritários; polarização política extrema; desconfiança nas instituições públicas; uso das novas tecnologias como instrumentos de manipulação e desinformação e ameaças à liberdade de imprensa e expressão.
Traduzindo esses pontos em exemplos concretos. Nos EUA, a presidência de Donald Trump demonstrou como a democracia pode ser tensionada internamente, inclusive com ataques diretos ao sistema eleitoral e ao funcionamento das instituições. Em outros países, partidos e líderes com retórica autoritária vêm ganhando espaço, desafiando normas democráticas e tentando corroer instituições de dentro para fora; a polarização extrema dificulta o diálogo entre grupos políticos e sociais, tornando mais árdua a construção de consensos e o avanço de políticas públicas de interesse coletivo.
E mais: a confiança nas instituições — como a mídia, o Judiciário e os Parlamentos — vem diminuindo, alimentando teorias conspiratórias e discursos antissistêmicos; as tecnologias digitais têm sido utilizadas para espalhar desinformação e manipular a opinião pública, distorcendo o debate democrático; por fim, a liberdade de imprensa tem sido ameaçada, enquanto a proliferação de fake news compromete o acesso da sociedade à informação confiável — elemento essencial à democracia.
Apesar desses sinais de alerta, há quem conteste a tese da “morte” da democracia. Muitos argumentam que, mesmo sob pressão, as democracias têm mostrado notável capacidade de resistência. É o caso dos Estados Unidos, onde as instituições sobreviveram aos arroubos autoritários. Em outros países, o engajamento cívico e a vigilância da sociedade civil têm funcionado como antídotos contra retrocessos.
O fato é que a participação ativa dos cidadãos na defesa dos valores democráticos e na busca de soluções públicas fortalece o tecido institucional. A mobilização social e institucional é, portanto, um sinal de resiliência, não de agonia. Steven Levitsky adverte que os Estados Unidos caminham perigosamente para o enfraquecimento democrático. Segundo ele, o país hoje “se parece muito mais com regimes da América Latina do que antes”. Embora não acredite num colapso total, vê em Trump — e no movimento que o cerca — a maior ameaça às instituições democráticas americanas na história recente. Para Levitsky, os EUA têm muito a aprender com os erros e lições vividos por países latino-americanos.
Quanto ao Brasil, o diagnóstico é mais otimista. Não se pode afirmar que a democracia brasileira esteja claudicante. Pelo contrário: há sinais visíveis de vitalidade institucional e social. Destaco alguns pontos: a polarização política, embora preocupante, pode ser interpretada como sinal de vitalidade social e engajamento político da cidadania; os Três Poderes da República seguem funcionando regularmente (as tensões entre eles, longe de significarem disfunção, fazem parte da dinâmica democrática, que pressupõe freios, contrapesos e o respeito ao contraditório); o cidadão brasileiro demonstra crescente interesse pela vida pública, evidenciado no florescimento de movimentos sociais e organizações da sociedade civil.
São quase um milhão de ONGs no país, muitas voltadas à defesa de causas como os direitos das mulheres, dos negros, dos indígenas, do meio ambiente; as manifestações de rua voltaram com vigor, reunindo expressiva parcela da população — mobilizada por partidos, lideranças e movimentos sociais. Trata-se de uma forma legítima e democrática de expressão.
É inegável que há ameaças e fragilidades. Mas democracia não é obra acabada. Está sempre em construção. Não é uma mera figura de linguagem, é uma tarefa. E, por isso mesmo, exige vigilância constante, disposição para o diálogo e confiança na capacidade de regeneração de seus mecanismos. Ela manca porque foi golpeada, mas continua em pé. Não caminha com firmeza, mas não caiu. E essa aparente fragilidade exige de nós uma atitude: ou a ajudamos a se reerguer, ou a empurramos de vez para o abismo. Ela precisa de reabilitação. Mais do que reformas institucionais, exige reconstrução de confiança, educação cívica, inclusão social e tolerância política. Se está claudicante, cabe a nós sermos suas muletas, seu fisioterapeuta e, quem sabe, seus novos pés.
Gaudêncio Torquato é escritor, jornalista, professor emérito da ECA-USP e consultor