A hemoglobinúria paroxística noturna (HPN) é uma doença ultrarrara e pouco conhecida que, segundo estudos, tem uma prevalência de 1 caso a cada 237 mil indivíduos. Fraqueza, fadiga, palpitações e falta de ar são alguns de seus sintomas e podem ser facilmente confundidos com outras condições. Isso traz desafios para seu diagnóstico, cuja jornada pode levar meses e até anos. O panorama da condição, os desafios da jornada e as tendências foram tema do novo episódio do Talks Online, disponível no canal do Futuro da Saúde no YouTube.
A conversa marcou também o lançamento de um whitepaper com dados inéditos e uma análise aprofundada sobre a HPN no país. O documento, que foi elaborado de forma conjunta entre Crônicos do Dia a Dia (CDD), Casa Hunter e Associação Brasileira de Câncer do Sangue (Abrale), reuniu informações de estudos e levantamentos sobre desafios e oportunidades, além de propor recomendações de ações para melhorar políticas públicas e a jornada do paciente.
“Há uma falta de conhecimento consolidado sobre a condição e de dados que subsidiem políticas públicas capazes de melhorar o cenário da HPN no Brasil”, afirma Gustavo San Martin, fundador da CDD e da associação Amigos Múltiplos pela Esclerose (AME). Além dele, participaram do episódio Andréia Bessa, advogada e representante da Casa Hunter, e Nina Melo, coordenadora de pesquisa da Abrale.
Dados do whitepaper
A HPN ocorre quando há um comprometimento nas células formadoras de sangue, as hemácias. Os pacientes relatam fraqueza e dificuldade para realizar atividades do dia a dia – até que um sinal chama mais atenção: a urina escura. “É esse sintoma que faz o paciente buscar ajuda médica”, explica Bessa.
Segundo ela, outros sintomas podem surgir, como falta de ar, dores abdominais e de cabeça, dor intensa no peito, nas costas e nas pernas, além de náuseas e inchaço. A condição pode ainda trazer complicações mais graves, como acidente vascular cerebral (AVC) e risco aumentado de trombose – muitos pacientes só têm conhecimento da condição após sofrerem alguma dessas situações.
O whitepaper divulgado no webinar traz dados sobre o panorama da HPN no Brasil, com perfil dos pacientes e as dificuldades encontradas nas jornadas de diagnóstico e tratamento. Ele partiu da compilação de estudos de diferentes abordagens metodológicas como análise de dados sociodemográficos coletados no DataSUS, netnografia de redes sociais e grupos focais com pacientes.
Dentre os achados, o documento mostra que mulheres levam, em média, 20 meses para fechar um diagnóstico, enquanto os homens levam 5 meses. Essa jornada envolve a consulta com três médicos especialistas, pelo menos.
O documento mostra ainda que, entre 2018 e 2022, cerca de 464 pacientes com HPN estiveram em tratamento pelo SUS. A maioria é do sexo feminino (53%) e tem idade entre 30 e 39 anos, representando adultos jovens ativos no mercado de trabalho. O estudo também aponta uma predominância de procedimentos ambulatoriais no Estado de São Paulo (aproximadamente 25%), seguido por Paraná e Rio Grande do Sul, evidenciando padrões regionais no acesso ao tratamento.
“Os dados trazem insights importantes sobre a jornada do paciente e reforçam a necessidade de olharmos para esses dados de forma estratégica”, pontua Nina Melo, da Abrale.
A coordenadora de pesquisa da Abrale destacou, também, a importância de reunir a expertise de diferentes organizações para compor um panorama mais completo da doença. Segundo ela, a partir das bases de dados públicas do SUS — como os sistemas de informações ambulatoriais e de internações — foi possível mapear o cenário atual dos tratamentos oferecidos aos pacientes. “Atualmente, estamos lidando com uma doença ultrarrara, cuja epidemiologia disponível é limitada do ponto de vista governamental. Por isso, torna-se essencial levantar esses dados”, afirma.
Desafio do diagnóstico
As informações do levantamento também destacam os desafios do diagnóstico — um problema frequente em doenças raras. Segundo o estudo, o tempo médio entre os primeiros sintomas e a confirmação da HPN pode se estender de um a três anos, especialmente quando há demora na correlação dos sintomas. Além disso, os pacientes geralmente consultam cerca de três médicos antes de receber o diagnóstico correto.
O primeiro exame solicitado costuma ser o hemograma completo, comum em casos de dores abdominais ou suspeita de cálculo renal. No entanto, o diagnóstico da HPN depende da citometria de fluxo, exame que, segundo a pesquisa, costuma ser solicitado apenas após investigação prolongada. “Primeiro, são descartadas várias outras possibilidades até chegar à citometria, que permite então a identificação da HPN”, explica Andréia Bessa.
Gustavo San Martin lembra que, em jovens adultos, os sintomas da HPN podem ser confundidos com sinais de fases intensas de estudo ou trabalho, o que retarda a identificação da doença. Essa demora pode ter consequências graves, incluindo AVC e falência hepática.
Segundo os especialistas, embora haja diferenças entre os sistemas, a dificuldade no diagnóstico e no manejo da doença não se limita ao SUS. “Hoje, existe uma necessidade não atendida de médicos hematologistas, cuja distribuição geográfica é concentrada principalmente nas regiões Sul e Sudeste”, observa Nina Melo.
Para ela, a falta de informação e conhecimento impacta a saúde privada e o SUS de formas diferentes. Na saúde privada, os pacientes têm acesso mais rápido aos exames necessários, enquanto no SUS há maior demora para procedimentos como citometria de fluxo, mielograma e biópsia de medula, o que contribui para atrasos ainda mais substanciais no diagnóstico.
Avanços no tratamento
Após o diagnóstico, o tratamento da HPN também carrega desafios significativos. Além de poucas opções terapêuticas disponíveis, algumas delas são administradas por via endovenosa a cada 15 dias, o que exige que o paciente se desloque a um centro especializado. Embora o acesso ao medicamento no SUS tenha melhorado nos últimos anos, a necessidade de deslocamento impacta a qualidade de vida, especialmente porque muitos pacientes são adultos jovens em idade produtiva.
“Cerca de 50% dos pacientes precisam viajar para outro município, com distâncias médias superiores a 80 km. O tempo total gasto no centro de tratamento, incluindo exames e consultas, pode consumir um dia inteiro, mesmo que a infusão em si seja rápida. Isso evidencia um vazio assistencial significativo e um impacto considerável na rotina dos pacientes”, pontua Nina Melo.
O deslocamento também gera impacto econômico: as longas distâncias percorridas, às vezes até 400 km, trazem despesas com transporte, alimentação e estadia, além de perder dias de trabalho, o que agrava os custos familiares. Já existe alternativa de tratamento oral e a incorporação desse medicamento ao SUS está em fase de consulta pública até 11 de novembro para posterior decisão da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias.
Além dos impactos no acesso e na rotina, a HPN afeta profundamente o aspecto emocional dos pacientes, ponto lembrado pelos especialistas durante o Talks Online. Muitos necessitam de apoio especializado de uma equipe multidisciplinar, incluindo psicólogos e nutricionistas, além de suporte familiar, para lidar com a fadiga persistente e as limitações da vida diária. Isso porque o principal tratamento atual não elimina totalmente os sintomas: estudos apontam que cerca de 80% dos pacientes continuam sintomáticos, com impactos físicos, emocionais, sociais e econômicos.
Os especialistas pontuaram, ainda, que o diagnóstico da HPN só pode ser compreendido ouvindo os pacientes, mapeando o tempo até a identificação da doença e analisando os detalhes do percurso, para orientar ações mais eficazes. Este, inclusive, foi um dos pontos inovadores do whitepaper, que incorporou um estudo de netnografia, com a escuta e compilação de depoimentos de pacientes em redes sociais e meios digitais.
“De uma forma muito oportuna, os três estudos do whitepaper se complementam. A netnografia retroagiu de 2024 a 2019 e conseguiu identificar depoimentos espontâneos que corroboram tudo o que os dados mostram. Essa legitimidade validada com os pacientes nos dá uma ferramenta com dados para estimular políticas públicas e mobilizar a sociedade”, conclui Gustavo San Martin.
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