A França viveu na quarta-feira (10/9) uma das maiores mobilizações populares do ano, com cerca de 175 mil pessoas participando de 550 manifestações e 262 bloqueios em todo o país, segundo dados divulgados pelo Ministério do Interior.
Em Paris, o centro comercial Châtelet-les-Halles — considerado o mais movimentado da Europa — foi fechado por medida de segurança após circularem nas redes sociais convocações para saques.
Nenhum trem ou metrô parou nas estações da região, conforme determinação da polícia. O movimento, batizado de “Bloquons tout” (“Vamos bloquear tudo”), surgiu de forma espontânea nas redes sociais e aplicativos de mensagens, reunindo reivindicações diversas contra a austeridade fiscal, as desigualdades sociais e o que muitos consideram como um desrespeito à democracia.
A jornada foi marcada por forte presença policial, episódios de tensão e confrontos em cidades como Paris, Rennes e Nantes. Até o fim da tarde, 473 pessoas haviam sido detidas, sendo 203 na capital, e 339 estavam sob custódia. Foram registrados 267 focos de incêndio em vias públicas e 13 agentes de segurança ficaram feridos.
O setor da educação também foi afetado: cerca de 100 escolas secundárias enfrentaram interrupções e 27 foram bloqueadas, especialmente em Paris, Montpellier, Rennes e Lille. Mobilizações estudantis ocorreram em diversas cidades, refletindo o engajamento da juventude na contestação social.
No final da tarde circulavam nas redes sociais imagens do incêndio em um restaurante no centro da capital, às margens dos protestos. A procuradora de Paris, Laure Beccuau, informou que o fogo que atingiu o estabelecimento pode ter sido causado involuntariamente por uma ação policial durante a dispersão de manifestantes hostis.
Detenções
As detenções em Paris incluíram 99 prisões provisórias, a maioria por formação de grupos com intenção de cometer atos violentos ou vandalismo. Dois indivíduos foram detidos por agressões contra autoridades, e seis menores também foram apreendidos. A procuradora destacou um dado novo: o número expressivo de mulheres entre os detidos, com mais de 70 identificadas, sendo cerca de 40 sob custódia.
O impacto da mobilização foi sentido em diversas frentes. Rodovias foram bloqueadas em regiões como Rennes, Caen, Nantes e Rodez. Houve tentativas de invasão nos pedágios do túnel do Mont-Blanc e uma operação de lentidão na rodovia A36 entre Belfort e Montbéliard. No transporte ferroviário, a estação Châtelet-Les Halles, maior terminal subterrâneo da Europa, foi fechada por segurança.
A circulação entre Toulouse e Auch foi interrompida por sabotagem de cabos, e outras linhas sofreram danos, como entre Marmande e Agen. A rede SNCF informou que houve tentativas de invasão em estações como Gare du Nord, em Paris, mas também em Marselha e Montpellier, todas frustradas pela polícia.
No transporte aéreo, 110 voos foram cancelados e houve atrasos em aeronaves que sobrevoavam o sudeste do país. As conexões com Nice, Marselha, Lyon e a Córsega foram especialmente prejudicadas. O Ministério dos Transportes também registrou o bloqueio de 28 estruturas fluviais, como eclusas, impedindo a navegação de 21 embarcações.
“Taxar os ultra-ricos, comê-los!”
Em Paris, milhares se reuniram nas praças da República e na Place de Fêtes, no leste da capital. Em La Rochelle, Christian, de 59 anos, funcionário público, pediu uma distribuição mais justa de recursos e criticou os gastos excessivos dos políticos. Bastien, estudante de 23 anos em Rennes, lamentou que “os políticos não escutam as urnas”. Em Bordeaux, Evelyne Bazin, aposentada de 67 anos, relatou que sua pensão não é suficiente para viver com dignidade: “Se compro carne hoje, tenho que abrir mão de outra coisa amanhã.”
Outros manifestantes exigiram uma tributação mais justa sobre os super-ricos. Marion, de 43 anos, funcionária portuária, empunhava um cartaz com os dizeres “Taxar os ultra-ricos, comê-los!” e criticava o acúmulo de riqueza por poucas famílias. Karine, de 52 anos, cuidadora, reclamava dos salários estagnados. Thérèse, de 75 anos, em Nantes, defendia uma reforma fiscal que não favorecesse os mais ricos: “Há jovens muito ricos e idosos muito pobres. O que falta é justiça tributária.”
“Tapa na cara”
A nomeação de Sébastien Lecornu como primeiro-ministro também foi alvo de críticas. Em Guéret, uma manifestante afirmou que a escolha do ex-ministro da Defesa de direita, aliado de longa data do presidente Emmanuel Macron, “foi um tapa na cara” e aumentou a indignação. Para Mendoff, agricultor de 26 anos em Nantes, o novo premiê representa “mais do mesmo” e um “desprezo adicional”. Warren, em Lyon, protestava contra “Macron e seu mundo”, dizendo que a troca de nomes não muda a política de fundo.
Sem liderança definida, o movimento lembra os “Coletes Amarelos” de 2018, mas com perfil mais jovem e politizado. A insatisfação generalizada e a multiplicidade de vozes indicam um momento de efervescência social que desafia o governo francês a responder com mais do que promessas de mudança.
A jornada de protestos foi inicialmente apoiada por sindicatos como CGT e FO. Após os eventos desta quarta-feira, a intersindical convocou uma nova greve nacional para o dia 18 de setembro, ampliando o calendário de mobilizações contra as políticas de austeridade e o que muitos manifestantes classificam como desprezo político.