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Em tempos de discussão sobre a importância de uma certa bagagem para atores em papéis de destaque na TV, Ary Fontoura surpreende ao dizer que, mesmo com mais de 70 anos dedicados à interpretação, ainda se considera incompleto.
“Sempre fiz muita coisa junto e em quantidade, não sei se em qualidade”, afirma. “Costumo reprovar vários trabalhos que faço, penso que poderia ter ido melhor. Sou intransigente comigo mesmo. Quando revejo atuações antigas eu fico louco, se eu fizesse agora seria melhor”, conta o artista à Folha de S.Paulo.
No próximo dia 27, Ary comemora 90 anos de vida, 74 deles dedicados à dramaturgia, ou como ele gosta de dizer, à eterna “procura por emprego”. Astro de novelas como “Saramandaia” (1976), “A Indomada” (1997), “Chocolate com Pimenta” (2003) e “A Favorita” (2008), o ator revela que não se acomoda nem pensa em aposentadoria tão cedo. “A energia que sentia antes não é a mesma de hoje, eu sei. Mas entendo os passos que posso dar.”
No bate-papo, Ary Fontoura também diz que não teme a morte e dá sua opinião sobre o conturbado momento político que vive o Brasil, algo que costuma tirar um pouco de seu bom humor. “Como todo cidadão, estou preocupado com meu país e lamento que tenhamos chegado a esse ponto.” Leia a entrevista completa abaixo.
PERGUNTA – Prestes a completar 90 anos, que reflexão faz sobre a vida até agora?
ARY FONTOURA – A coisa mais importante na minha vida é que aos 90 anos eu estou saudável. Reconheço, não são todos os que chegam a esse ponto nessa condição, mas sempre estou agradecendo, sempre gostei de viver, valorizei a vida, e isso é motivo de confiança para que eu permaneça por aqui um pouco mais. Existiu um momento em que foi preciso decidir o que eu queria. E tive a felicidade de saber que o que eu desejava mesmo era ser artista.
P.- Quando teve esta percepção?
AF- Tudo o que acontecia comigo convergia para isso. Estou há 74 anos trabalhando nesta profissão. Na verdade, 74 anos procurando emprego, pois nossa área é ingrata. Fazer teatro, cinema, TV, sobretudo no Brasil, precisa ter fôlego, porque é um campo repleto de encruzilhadas e curvas que te surpreendem. Ao longo da minha trajetória, fui alimentando certo egocentrismo para tocar isso para frente. É uma profissão solitária e que até hoje as pessoas acham que é extraordinária. No fundo, é uma grande fantasia.
P.- Algum trabalho o deixou insatisfeito? E algum papel dos sonhos, ainda por interpretar?
AF- Sempre fui fazendo coisas que me eram possíveis fazer. Tenho sonhos, coisas que ainda não fiz. Se você se sente excelente e acha que nada falta, é aí que mora o perigo. Por mais que eu tenha tido trabalhos bem-sucedidos, apoio da crítica e público, costumo ainda reprovar vários trabalhos que faço, penso que poderia ter ido melhor. Sou intransigente comigo mesmo, me julgo incompleto. Quando revejo trabalhos antigos eu fico louco, se eu fizesse agora faria melhor.
P.- Se arrepende de alguma coisa na vida?
AF- Sim, de não ter feito escola de arte dramática. Eu sou autodidata, aprendi vendo os outros trabalharem. Gostaria de ter estudado mais teatro, mas o instinto de sobrevivência me jogou para outro lado. Me faltou coragem para estudar.
P.- O senhor tem embarcado num lado mais bem-humorado nas redes sociais. Nesse momento de caos político, rir é o melhor remédio?
AF- Levar a vida com bom humor não significa que estejamos alienados aos problemas e não entendamos a situação política. Mas perder humor nesses momentos turbulentos não adianta, há coisas que não dependem de você. Meu humor é constante, mas confesso que às vezes, diante dessas notícias de invasões em Brasília, por exemplo, o povo quebrando tudo, fico mais triste e me afeta.
P.- Qual a sua opinião sobre esses ataques golpistas?
AF- Fico pensando que vivemos numa democracia e podemos fazer reivindicações dentro do limite, mas essa extrapolou tudo. Isso mexe com meu humor, mas me recupero bem e vejo que tudo passará. Tempos melhores virão, e o povo vai entender que não se pode fazer tudo, quebrar tudo, é estupidez. Estou preocupado com meu país, como todo cidadão, e lamento que tenhamos chegado a esse ponto.
P.- Tem projetos para 2023?
AF- Sempre fico na expectativa. Tenho recebido convites pelo Instagram. Dentro do meu tempo, vou fazendo uma triagem do que é melhor. Apesar da idade que estou, tenho a possibilidade de escolher trabalhos.
P.- Como se vê daqui a alguns anos? A finitude da vida o assusta?
AF- Sou uma pessoa bastante otimista. Não tenho medo de morrer, mas, sim, de ficar inválido e submetido à boa vontade dos outros. Por outro sentido, a própria forma como vivemos nos dá o tempo. Me parece bom não saber o dia da nossa morte, imagina se soubéssemos? A morte é natural, posso morrer dormindo, acordado, viajando, mas não vou ficar pensando. Acredito na vida e faço dela o melhor que posso.
P.- O senhor não se cansa de trabalhar?
AF- Sempre fiz muita coisa junto e em quantidade, não sei se em qualidade. Tudo requer oportunidades, fazer bons trabalhos, mas o sucesso está sempre escondidinho. Só na Globo estou faz 58 anos com currículo grande. Mas continuo sempre procurando trabalho e mantendo contatos. Na terceira ou quarta idade, você não é mais um garoto e os problemas físicos são considerados.
P.- A rotina é sempre puxada? Pensa em aposentadoria?
AF- A rotina de gravações… São 10 horas diárias. Mas consigo papéis bons. Sempre tem um vovô, um titio, a idade não é impeditiva, ao contrário, ela por vezes é mais importante pela experiência adquirida. A aposentadoria é o final de tudo, e uma palavra esquisita para mim e não me atrai.
`Por Folhapress
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