“Por motivos de perseguições políticas contra a minha família, em 29 de janeiro de 1929, fui nomeada professora estadual da cadeira 615, de 1° entrância na Vila do Bom Nome, no Município de Belmonte, sertão de Pernambuco.
Apesar de ter no internato da Academia Santa Gertrudes, várias colegas de Flores, de Cabrobó, de Floresta, de outras cidades nos limites com a Bahia, Piauí, Ceará, e Paraíba, o sertão carregava a fama de fim-de–mundo, zona infestada de cangaceiros, de vida duríssima, perigosa, só mesmo para os que ali nasciam.
E foi justamente para esse fim de mundo que fui nomeada. Bom Nome…Não conhecia ninguém daquelas paragens, nem sequer jamais ouvira essa denominação de Vila.
Por intermédio de um amigo o Sr. Sebastião Caldas, alto funcionário da secretaria do interior, entrei em contato com Cândida, professora de Belmonte, e assim resolvemos viajar juntas. O pai da mesma havia contratado um automóvel para conduzir um grupo de cinco, pois dona Eufrásia, minha mãe, e minha irmã Maria Elza, também se fizeram acompanhar.
O Buick espirrou numa madrugada da segunda quinzena do mês de fevereiro de 1929. Todos o esperavam para o imediato aboletamento no grande e confortável automóvel norte-americano.
Partimos rumo ao desconhecido, afrontando caminhos péssimos e tortuosos. O carro corria tanto quanto lhe permitia a estrada sem trato, sem proteção. A monotonia dos descampados dava–nos vontade de dormir, até que depois de varar muitos dias e noites, e já próximo do fim do trajeto, o automóvel enguiçou com uma peça importante quebrada. Semi-eixo rolado. Parada forçada, o desespero estampou-nos as faces. Isso obrigou-nos a continuar o restante do trajeto que faltava a pé, e Bom Nome era o destino. Como se tivéssemos asas nos pés nos pusemos em marcha novamente até que ao entardecer avistamos a Vila, um punhado de casas na amplidão daqueles descampados, a igrejinha larga e branca a acenar-nos com outras faces, outras experiências, outros costumes, outros enleios, outros sorrisos,outras esperanças.
Bom Nome estava diante de nós. Uma única rua de uns 10 metros de largura e 300 de comprida, a um quarto do lado esquerdo o pequenino pátio com telheiro e a capela ao fundo acolhedora. A cruz do frontispício dava-nos então as boas vindas. Casario pobre, raras moradas de aspecto menos descuidado, com calçadas e frontarias sólidas.
Não conhecíamos ninguém na Vila. Todavia o cansaço indicou-nos a direção certa. A primeira casa á esquerda estava de janela e portas central abertas, parecendo a primeira vista a melhor do lugarejo.
Batemos a uma senhora de pele e olhos claros, acompanhada de crianças do mesmo tipo apareceu à entrada:
– Sou a professora estadual de Bom Nome. E uma face ao mesmo tempo espantada e jubilosa, logo expressou mais que com palavras as disposições da dona da casa.
– Mas a senhora chega assim sem aviso? E foi logo encaminhando-nos para a sala, fazendo-nos sentar.
– Pena que meu marido não esteja presente. Ele foi hoje à roça a primeira vez depois de levantar-se da cama com uma febre tifo.
Pediu licença, entrou e foi providenciar um jantar apressado. Depois chegaram outras pessoas atraídas pela novidade de um grupo bem vestido, apresentando-se a pé. De vinte a trinta peregrinos desfilavam diariamente por Bom Nome, indo e voltando do Juazeiro do Padre Cícero, mas, ou vinham de caminhão, ou tão mal trajados que indicavam logo a classe social a que pertenciam.
Nisso passamos a historiar as peripécias da viagem, o fracasso do Buick. E todos repetiam a mesma lamentosa interrogação:
– Mas porque não avisou a seu Pedro?
Ora “seu” Pedro era realmente a pessoa a quem se devia ter dirigido. O homem – Pedro Donato de Moura, filho do rico comerciante de Belmonte, capitão Tertuliano Donato de Moura – fora nomeado delegado de ensino da localidade e era uma das suas figuras de maior prestigio. Por mais, porém, que o sertão amedrontasse os moradores do Recife e proximidades; por mais que dessem cores escuras à avaliação de sua realidade, jamais passaria pela mente de um deles ser possível sofrer o que sofremos. Quais os prejuízos do pobre motorista? Quantos dias perdeu naqueles descampados? E o pai da professora da cadeira estadual de Belmonte, como se arranjou para justificar aos chefes a sua prolongada ausência?
Para nós, a via-crúcis estava encerrada. Agora era adaptar-nos a Vila e aos seus costumes.
De inicio hospedamo-nos em casa de seu Pedro Donato, um grande amigo como também a sua esposa, dona Honorina, das tradicionais famílias Bezerra e Carvalho, até que o mesmo instalou-nos em habitação quase defronte a sua, de porta e três janelas na fachada.
Tive grande surpresa com o mobiliário escolar: 20 carteiras largas, de assento duplo; quadro-negro; bureau com cadeira própria; balança com pesos de quilos e frações; mapas e coleções de quadros para ensino de história, geografia, linguagem e matemática. Tudo novinho em folha, cheirando a tinta, pois a cadeira havia sido criada nesse ano e era eu a primeira professora estadual da comunidade.
E muito estudo na verdade foi o que aconteceu em Bom Nome, além de outros fatos importantes. A escola encheu-se. Meninos vinham de fazendas a uma légua de distancia – como os da “Carnaúba,” como Argemiro, Leônidas filhos do coronel Manoel Pereira Lins, e um pretinho Valdemar Miranda, cria do coronel. O limite de matriculas foi ultrapassado de muito, passou–se de 60, quando 40 a 45 era a ordem do governo. Eu ficava com os mais adiantados, Maria Elza com os menores e dona Eufrásia com os particulares.
Uma das primeiras aulas de geografia consistiu em sair a classe que deveria estudar a localidade, contando as casas, de um a outro lado da rua: eram 84 apenas. Algumas desocupadas ou servindo a famílias de fazendeiros nos dias de festas e nos domingos.
Um dos pais de quatro alunos – o fazendeiro Napoleão Araújo (Seu Napo) cujo nome foi dado tempos depois ao grupo escolar da localidade, vendo o aperto da sala de aulas, se propôs espontaneamente a solucionar o problema do prédio. Um dos seus, alguns metros adiante, ele resolveu adaptá-lo à escola. Fez derrubar parede contigua ao quarto maior da casa, aumentando a sala para as aulas; cimentou-lhe o piso, mandou pintar tudo a óleo num requinte de gosto e generosidade. Ofereceu-nos um ambiente mais agradável, suavemente colorido de verde. Mesmo pagando 30$000 de aluguel, queríamos corresponder à boa vontade do fazendeiro.
Que podia Bom Nome oferecer de alegria as exiladas? Logo soubemos que a mala do correio chegava de semana a semana. E foi uma das nossas distrações, aboletar-nos na calçada de seu Pedro Donato, ao começo da rua, aguardando o mensageiro, que quando não aparecia montado no seu jumento, era uma decepção geral.
Outros dos nossos divertimentos era apreciar o espetáculo das trovoadas sertanejas quando os relâmpagos coriscavam, ziguezagueavam, abrindo clarões ofuscantes, traçando surpreendentes
linhas de fogo, desenhando e pintando figuras surrealistas, acendendo e apagando composições em ouro e verde, anil e prata, escarlate e negro, lilás e roxo, rutilantes, fosforescentes, aluminhantes, inesquecíveis em tom de beleza.
Ou ainda embevecíamos com os fins de tarde, o céu largo tingindo-se de vermelhos e violetas, jades e opalas, de nuances, incontáveis, incomparáveis.
Nunca se repetia o resplendor daquelas horas e elas foram a fascinação daqueles maravilhosos dias na Vila de Bom Nome.
Depois a escola cheia, as simpatias se tornaram afeto, começou e não acabou mais a série de visitas, encontros, passeios, com missas mensais do padre José kherlle e as festa do Padroeiro Santo Antonio, religiosas e profanas de junho; de nossa senhora do Perpetuo Socorro, em novembro. Tudo com muitos fogos de artifícios, girândolas, missa cantada, até de chapéu compareciam senhoras das fazendas, ricamente vestidas, enquanto os pífanos sonorizavam o oficio.
Nesse período, por intermédio do amigo Clodoveu Carvalho, conheci o mais animado, São João do Município de Belmonte, realizado na Vila de São João de Campos, hoje Município de Mirandiba.
No dia 21 de julho de 1929, tive a oportunidade e o prazer de conhecer a sede do Município de Belmonte, ocasião do casamento do irmão de seu Pedro, o Sr. Quinca Donato, com uma moça também da cidade dona Lizô, da família Rodrigues. Um verdadeiro assombro com o luxo e o primor do enlace com soçaite da época todo presente. Todo mundo bem vestido, com tecidos de qualidade de se estranhar naquelas lonjuras. Os homens de linho HJ, gravatas vistosas, chapéus Ramenzzoni ou Prada, as mulheres de chiffon de seda, autêntico, suíço – ou Francês? – campo claro com rosas rubras, crepe marocan em pastel com estamparia, seda encorpada em tom de vinho escuro. Foram três dias inesquecíveis de “danças” na casa de seu Terto Donato, pai do noivo, com animadas quadrilhas marcadas por Né Lucas, da família Carvalho.
Os exames do fim do ano chegaram enfim, e foram presididos por um alto funcionário dos correios que passava em inspeção por Bom Nome. Provas escritas e orais, espichadas até altas horas da noite, escrevendo ainda um copioso elogio ao fim. E não exagerou. Naquela Vila perdida no sertão, subsistia costume de estudo, estabelecido por senhora sertaneja, da família Pereira: dona Januária, professora municipal, com bastante inteligência e vocação para o ensino que despertou e alimentou nos seus alunos o gosto pelas letras. Aposentara-
se quando nada mais podia dar de sua experiência. Daí o pedido ao governo de cadeira estadual. Atendido, encontrei o campo preparado.com colaboração da minha mãe: dona Eufrásia e de minha Irmã Maria Elza, a semeadura e a colheita foram maravilhosas.
O tempo enfim foi passando até que chegou maio, quando a igrejinha de Bom Nome já se floria para os exercícios marianos de que participei, juntamente com a minha mãe e minha Irmã, unidas mais que nunca na saudade da família, chegava o telegrama com a notícia de minha transferência para outro oco do mundo, nos limites extremos de Pernambuco com a Paraíba, Município de São José do Egito, Vila de São Pedro das Lages. Mais uma experiência a caminho.”
Isnar Cabral deMoura*
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*Natural de Timbaúba, Isnar Cabral de Moura foi uma educadora de méritos consagrados, jornalista, cronista social e escritora. Este belo depoimento sobre a sua experiência como professora primária na Vila de Bom Nome foi prestado ao historiador Valdir Nogueira quando da publicação do livro “São José do Belmonte” no ano de 1999.
Por José Valdir Nogueira
Colunista de cultura do Blog do Silva Lima